No Dia Nacional da Infância, especialistas reforçam que afeto, prevenção e proteção contra a adultização precoce são pilares que sustentam o futuro de uma geração.

O dia 24 de agosto, marcado como o Dia Nacional da Infância, não é apenas uma data no calendário. É um chamado à reflexão: como estamos cuidando das nossas crianças nos primeiros anos de vida — fase em que corpo, mente e vínculos sociais estão em plena construção?

É nesse período que se define muito do que cada pessoa levará para o resto da vida. Ainda assim, o Brasil convive com falhas graves: pais e cuidadores que recorrem a gritos e palmadas como disciplinabaixas taxas de vacinaçãocrescente crise de saúde mental já nos primeiros anos de vida e uma preocupante onda de adultização precoce, potencializada pelas redes sociais.

Cuidar da infância, portanto, vai muito além de prover o básico. Significa garantir que a criança cresça em um ambiente seguro, amoroso, saudável e respeitoso, que a permita viver plenamente o que ela é: uma criança.

As feridas invisíveis da negligência

Uma pesquisa da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal revelou que 42% dos brasileiros não sabem o que significa primeira infância, e apenas 15% reconhecem sua importância para o desenvolvimento físico, emocional e cognitivo. A falta de consciência abre espaço para práticas que deixam cicatrizes invisíveis — mas permanentes.

neurocientista Telma Abrahão, referência em desenvolvimento infantil, explica que a negligência, inclusive emocional, é uma forma de violência que marca profundamente o cérebro em formação:

“Quando a criança é privada de carinho ou cresce em um ambiente de insegurança, instala-se o estresse tóxico. Esse estado de alerta constante compromete funções como autocontrole, memória e resposta ao medo.”

Pesquisas internacionais, como o Estudo ACE (Adverse Childhood Experiences), confirmam que essas experiências adversas aumentam o risco de ansiedade, depressão, vícios, dificuldades de relacionamento e até doenças físicas crônicas na vida adulta.

Telma reforça:

“Nem todos têm filhos, mas todos tiveram infância. E o que acontece na infância, de fato, não fica na infância.”

Saúde física: do prato ao calendário de vacinas

Se o afeto protege a mente, a saúde física protege o corpo. Mas esse cuidado vai muito além de consultas médicas: envolve alimentação, sono, movimento, prevenção de acidentes e vacinação.

Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda aleitamento materno exclusivo até os seis meses e continuado até dois anos ou mais. Após essa fase, começa a introdução alimentar, cheia de desafios e descobertas. Especialistas lembram dos erros mais comuns cometidos pelas famílias: oferecer leite de caixinha e derivados antes da hora, usar sal e açúcar precocemente, incluir alimentos ultraprocessados ou deixar que telas disputem a atenção na hora das refeições.

O exemplo da família também pesa: quanto mais a criança observa os adultos consumindo alimentos frescos e variados, maior a chance de ela querer experimentar.

“Mesmo que o bebê recuse um alimento na primeira tentativa, é importante oferecer novamente, de formas diferentes. Mais do que nutrição, a comida é também uma forma de afeto”, orienta a nutricionista Adriana Zanardo.

O cuidado físico também inclui:

  • Sono de qualidade: é durante o sono que hormônios essenciais ao crescimento são liberados.
  • Brincar em movimento: a OMS recomenda 60 minutos diários de atividade física para crianças, mas muitas não atingem essa meta.
  • Ambientes seguros: prevenção de acidentes domésticos, uso correto de cadeirinhas no carro e supervisão constante.
  • Vacinação em dia: a farmacêutica e imunologista Ana Medina lembra que cada dose aplicada é, na verdade, um ato de amor e responsabilidade coletiva.

Apesar da importância, o Brasil não atinge as metas de vacinação infantil desde 2015. A poliomielite, considerada eliminada, corre risco de reintrodução. O sarampo também voltou a registrar surtos. Segundo relatório do Unicef, o Brasil tem a segunda pior taxa de vacinação em bebês da América Latina, atrás apenas da Venezuela.

Saúde mental: atenção que começa cedo

A saúde mental também nasce na infância. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 50% dos transtornos mentais têm início antes dos 14 anos. Ou seja, o que acontece nos primeiros anos de vida é determinante para reduzir riscos futuros.

O relatório On my mind, do Unicef, alerta que experiências de violência, negligência ou insegurança nos primeiros anos aumentam significativamente as chances de sofrimento psíquico ao longo da vida. E mesmo diante desses números, a maioria dos casos ainda não é identificada ou tratada de forma adequada.

Estudos do Centro Marista de Defesa da Infância (CMDI) também reforçam que o bem-estar de meninos e meninas passa pela construção de ambientes seguros, afetivos e estimulantes, e que a violação de direitos é um fator que desencadeia e agrava o sofrimento psíquico.

Esses levantamentos mostram ainda que fatores como pobreza, insegurança alimentar, racismo, desigualdade de gênero e violência podem potencializar esse sofrimento. Por isso, a atenção à saúde mental das crianças deve ir além do atendimento individual e ser tratada como um compromisso social, que envolve políticas públicas intersetoriais, formação de profissionais e apoio às famílias.

No Paraná, por exemplo, existem 155 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), sendo 15 exclusivos para crianças e adolescentes. Mas, mesmo com iniciativas, a demanda ainda supera a oferta. O desafio é ampliar políticas de promoção e prevenção desde a primeira infância, garantindo que cada criança tenha acesso a espaços de cuidado, acolhimento e proteção integral.

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Natureza: o poder dos “espaços azuis” e verdes

Um aspecto muitas vezes esquecido do cuidado infantil é a conexão com a natureza. Uma pesquisa publicada no Journal of Environmental Psychology, baseada em dados de 18 países, mostrou que adultos com melhores índices de saúde mental relataram mais experiências positivas em “espaços azuis” (mares, rios e lagos) durante a infância.

A educadora e especialista em neurociência Kátia Chedid reforça:

“O contato com a natureza melhora todos os marcos de uma infância saudável — imunidade, memória, sono, aprendizado, sociabilidade e capacidade física — e contribui significativamente para o bem-estar integral.”

Mais do que uma lembrança bonita, brincar perto da água ou em parques é uma estratégia de saúde: reduz estresse, melhora o sono, estimula a criatividade e fortalece vínculos familiares. Crianças que crescem próximas da natureza tendem a se tornar adultos mais saudáveis e conscientes.

E aqui entra um ponto essencial: brincar. Se a natureza é cenário, o brincar é a linguagem que dá vida a essas experiências. Reconhecido em 2024 como um direito por lei no Brasil, o ato de brincar deixou de ser visto como passatempo e passou a ser compreendido como questão de desenvolvimento e proteção.

Quando a criança inventa histórias, corre, pula ou se aventura em contato com a natureza, ela não está “gastando tempo”: está construindo memória afetiva, desenvolvendo atenção, empatia, raciocínio e coordenação motora. Como mostram os dados e especialistas reunidos no texto Os desafios do brincar na infância contemporânea, garantir tempo e espaço para o brincar é tão fundamental quanto cuidar da alimentação ou da vacinação.

Mais do que nunca, proteger a infância significa também abrir janelas para o brincar livre, em contato com o verde e o azul da vida.

Adultização: quando a infância é roubada

Nos últimos dias, um vídeo do influenciador Felca escancarou um fenômeno perigoso: a adultização de crianças e adolescentes nas redes sociais. Ele denunciou o chamado “algoritmo P”, que expõe cada vez mais conteúdos sugestivos envolvendo menores.

A denúncia viralizou e acelerou a aprovação do “ECA Digital” na Câmara dos Deputados. A lei busca regular a proteção online, impondo obrigações às plataformas. Mas especialistas alertam: medidas apressadas podem ser ineficazes ou até restritivas.

Mais do que legislar, é preciso educação digital para famílias, escolas e criadores de conteúdo. Afinal, proteger a infância também significa garantir que ela não seja explorada nem acelerada pelo olhar adulto.

O presente que atravessa gerações

Infância protegida não é responsabilidade exclusiva dos pais: é um compromisso coletivo. Famílias, escolas, profissionais de saúde, comunidade, legisladores e até influenciadores digitais formam a rede que garante uma geração mais saudável.

Telma Abrahão resume:

“Muitas vezes, mães e pais não agem por maldade, mas por falta de suporte. É urgente investir em políticas públicas que apoiem a parentalidade e fortaleçam a rede de proteção à infância.”

Ana Medina complementa:

“Pais e responsáveis precisam manter vacinas em dia, mas também oferecer alimentação saudável, sono adequado e ambientes seguros. Tudo isso junto dá às crianças a chance de crescer de forma plena.”

Neste Dia Nacional da Infância, a mensagem é clara: proteger as crianças é o maior presente que podemos dar ao futuro. Porque uma criança saudável, amada e respeitada hoje é o adulto mais consciente, empático e resiliente de amanhã.


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